O gigantismo de uma “Secretaria da Doença” dentro do Ministério da Saúde torna-se ainda mais evidente e insustentável à medida que olhamos a questão por diferentes ângulos e com maior distanciamento.
Acabei de retornar de um mês sabático na Noruega (segundo episódio do podcast já disponível em https://tinyurl.com/yvcsctjr ), onde visitei a Memira . Dessa perspectiva, a 10.627 km de distância, convido-os a refletir sobre os termos do título deste artigo.
Um amigo meu, diretor médico da operação norueguesa da clínica, afirma que não opera pacientes “doentes”. Ele realiza cirurgias que reduzem a dependência de óculos e lentes de contato, utilizando laser e lentes intraoculares, em pacientes sem catarata.
Os pacientes procuram a clínica geralmente por terem graus de refração elevados (acima de 8-10) ou porque não conseguem mais enxergar de perto como antes, uma condição conhecida como presbiopia ou vista cansada, que acomete todos ao redor dos 43 anos de idade. Em comum, eles compartilham o desejo de reduzir significativamente o uso de óculos ou lentes de contato, apresentando queixas que resultam de disfunções oculares, as quais, muitas vezes, levam a desabilidades e limitam as atividades e a participação social.
Vamos lembrar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doenças e enfermidades”, ou seja, um estado de equilíbrio dinâmico entre o organismo e seu ambiente.
Aqui tratamos de disfunções quando elas se transformam em doenças formalmente reconhecidas pelo CID (Código Internacional de Doenças), inserindo-as no espaço médico, onde intervenções são prescritas por profissionais de saúde, como nós, médicos. O sistema está estruturado para recompensar financeiramente as intervenções mais complexas, sem nem conseguir alinhar desfechos positivos, satisfação ou a reintegração social do paciente aos indicadores de sucesso de tais ações.
Nossa Constituição remete ao Estado a responsabilidade integral pelos cuidados com a saúde, abarcando sua promoção, proteção e recuperação, porém aqui coloco as doenças no pódio, ocupando posição central no ministério. Isso formaliza a armadilha de que os recursos nunca serão suficientes e as condições promotoras e protetoras da saúde sempre serão delegadas a um segundo financiamento.
Na Escandinávia, o sistema público é responsável pelas cirurgias de catarata, além da prescrição de óculos e medidas de saúde ocular primária. Por isso, meu amigo não opera pacientes “doentes”, que são tratados pelo Estado, mas sim disfunções que podem levar a desabilidades.
As comparações diretas com um país nórdico cuja população é 40 vezes menor que a nossa, e com abundantes recursos naturais (petróleo e gás), são injustas e pouco produtivas para uma conclusão. No entanto, o exemplo isolado de um médico que não opera CID, mas sim escolhas, é um conceito ainda muito pouco entendido, a ser explorado na medicina e na oftalmologia.
Chamo as práticas que devem ser sempre compartilhadas e decididas junto aos pacientes (ações com escolhas bastante testadas) de “eletivas”, embora, do ponto de vista médico, procedimentos eletivos sejam aqueles planejados com antecedência, não urgentes. As cirurgias ditas estéticas, de pálpebras, se enquadram nessa categoria, assim como a correção de grau com laser, que, apesar de bastante avançada em nosso meio, ainda é pouco executada em comparação ao seu potencial e aos números internacionais.
Argumento que a baixa implementação de procedimentos óptico-cirúrgicos eletivos decorre exatamente da mistura de doença com disfunção-desabilidade. Treinamos residentes e especialistas para tratar doenças, mas falamos pouco sobre como entender e direcionar as deficiências, discutir com os pacientes e decidir em conjunto “o quê”, “quando”, “como” ou “por quanto tempo”. São muitas as portas abertas que precisamos fechar com os nossos assistidos.
O reposicionamento em termos financeiros e de infraestrutura será crucial para a criação de um ministério com pastas equilibradas. Cirurgias relacionadas à saúde “ótica” provavelmente não terão alta prioridade na “Secretaria das Disfunções.” No entanto, caso sejam reconhecidas como desabilidades, podem ser transferidas para a “Secretaria das Desabilidades”, onde talvez recebam maior atenção e recursos. Ainda assim, é importante destacar que uma mudança cultural, baseada no compartilhamento, empoderamento e educação, deve preceder qualquer reorganização estrutural – e, além disso, tem um custo significativamente menor.
Doenças e disfunções-desabilidades não habitam o mesmo espaço de “diagnóstico” nem de “tratamento”. Reconhecer cada condição e tratá-las com as ferramentas adequadas, com planejamento e estratégia pessoal e governamental, pode nos aproximar mais de um estado completo de bem-estar psicossocial, e não apenas da ausência de doença.